segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Leonardo Chioda

Leonardo Chioda é um poeta nascido em Jaboticabal, interior de São Paulo, em 1986. É graduado em Letras pela Universidade Estadual Paulista e pela Universitàdegli Studi di Perugia. Tem poemas e ensaios em diversas publicações literárias e antologias nacionais e internacionais.
Sua estreia em livro foi com Tempestardes (São Paulo: Editora Patuá, 2013), premiado pelo ProAC (Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo). Seu novo livro, POTNIA, será publicado pelo Selo Demônio Negro.
Leonardo também publica artigos sobre simbologia e há 10 anos assina o blog Café Tarot, associando as cartas à literatura.



escreveu certa vez o fotógrafo Duane Michals:
the most beautiful part of a man’s body - I think it must be there

ele acredita estar aí o poema do homem 
que a parte mais bonita se dá no princípio — que é o verso

homem na idade tenra
[poucos pelos] de truculência delicada
em posição quadrúpede 

a parte mais bonita fica no glúteo — o início empinado à boca 
porque no princípio estava o homem
todo e tão entregue às grandes forças:

um relâmpago um lince
um outro homem 

no argumento sobre a interseção entre
músculo e nervo sobre língua e nádega

nada existe além da fotografia no começo — que é este verso:
imagem fundadora do homem à força — entre quatro paredes 
[de quatro] nos cantos do mundo 

a parte mais bonita do corpo
vai no torso curvado à escrita

presas mãos na nuca 
as axilas com apetite

e é tudo uma teoria indômita em estado de graça 
de costas a gozo a membro convidado à entranha

tão fotografado o corpo do homem
rendido à própria engenharia:  uma arte uma usina
— peça no domínio da ardência no idioma natural

porque a parte mais bonita
deve ser lida aqui: na língua original [e tão faminta]:

the point of pleasure



#



porque a terra ferve

a mão direita te ensina as lavras
e o corte harmonioso da forma

nas casas pardas
tudo incandesce

draga o meu rastro pelas antilhas
— minhas mãos te fazem
firme aberta a declive nas chagas

aqui nos amo feito a homenagem
com um rosto: paralelo fulgurado
e nada nos falta na estrela

a paisagem se encaminha
pela carne tramada
quando entro nas células
para a relação dos verbos da água celeste
aos ancestrais: à vidência

são duas criaturas com figos
elas me atravessam os poros

tudo incandesce
resvala
estamos vivos para sempre
nos nomes nefandos
na dureza virgínea do limo

porque a terra ferve: meu amor é equinócio
o amor fulcral: louco: óxido

a língua numinosa



#



grandes amigos com aquário no mapa

pândegos
terrenos amigos
terríveis a trono
exaltados

no ouro e na morte a fôlego e planície

amigos de costumes
amigos mercenários
amigos dos quadros
de ditadores nas calçadas

amigos milícias
juros amistosos
amigos e sereias
musas militantes a púlpito
e antepassados

amigos presos em sonhos

caros amigos
caçando deuses para destruí-los
amigos nas metralhadoras
amigos no começo do fim do mundo

um sistema falho
como os amigos
sorvendo severos planos áureos

amigos de cauda
longa e próspera

amigos que a signo
a braço a fundo no peito

amigos fora de controle
amigos de coleção
artigos de chacina
amigos em grupos
amigos arados no ódio

no céu com os amigos

amigos
cães de briga
amigos
na vanguarda
amigos

matar os
grandes amigos
como se os pudesse comer crus
os meus no estômago do poema

amar os amigos
no final


#



CAUTION

POETS IN THEIR NATURAL HABITAT


please do not tap on glass or make eye contact with them
as poets are easily charmed by normal people

please do not feed the poets as they are on a strict diet of
ancient verses, nightshades and broken hearts

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Poema inédito de André Monteiro

André Monteiro é um poeta e professor da UFJF nascido em 1973 em São João Del Rei, Minas Gerais.
Publicou os livros A ruptura do escorpião – Torquato Neto e o mito de marginalidade (Cone Sul, 1999), Ossos do ócio (Cone sul, 2000), Cheguei atrasado no campeonato de suicídio (Aquela Editora, 2014), Liubliblablá: mastigações de um camelo (Bartlebee, 2015), escrito em parceria com Luiz Fernando Medeiros, e Inacreditáveis: assovios antropopaicos (Editora Raquel, 2016), em parceria com Roberto Corrêa dos Santos.
Realizou os vídeos-poema Corações flutuantes (1992), O espetacular devir de casa (2000), Tudo que (2001), em parceria com Laly Martín, e o Elogio da claridade (2003). Participa, em Juiz de Fora, como compositor e intérprete, dos projetos poético-musicais Ou sim: música, poesia e outras esquina e Verbo em DISCOntrole.

Foto por: Stephan Rangel 


diagnóstico e revolução

1.
ainda querem fazer essa porra toda parecer muito fundamentada. ainda querem acreditar em resultados. mais ainda, em resultados esperados. mais ainda, querem nos cobrar os tais resultados esperados. mais ainda, querem nos vigiar para que encontremos o melhor dos resultados esperados. mais ainda, querem nos punir com satisfação quando não podemos mais fingir que acreditamos em possíveis resultados esperados. mais ainda, quando sabemos muito bem que eles não sabem nada, que eles não são mais, nem menos, videntes do que nós. mais ainda, quando sabemos que eles somos nós. mais ainda, quando nós podemos não ser como eles, ou, pelo menos, podemos, mesmo sendo eles, não ser o que eles esperam de nós. mais ainda, quando podemos ser nós-outros: os que não sabem deles, os que não sabem de nós, os que se sabem cegos, os que se sabem outros, os que se sabem os que não sabem nada e continuam se abraçando sem explicação, descobrindo que, desse jeitinho, sem explicação, essa porra toda fica muito mais gostosa.

2.
tá pensando o que, malandro? você tem que rebolar. rebolar pra caralho pra encontrar as brechas, pra construir os respiradouros, pra ler poesia pros seus insetos, pra quebrar o medo de amar e de esquecer os papéis em casa, pra não fazer a chamada, pra não ficar dando trocado pra vira-lata ressentido, pra jogar os medinhos pela janela, pra não ficar pagando o pau pros nomes que estão na listinha, pra se arriscar a dar o grito, pra amar sem recompensas, pra não dançar conforme a música, pra fazer silêncio, pra não se mexer demais e ouvir estrelas. tá pensando o que, malandro? rebola. delírio não se compra na farmácia.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Três poemas inéditos de João G. Junior




Chumbo que respiro

ventania é o prenúncio
de mudanças
a madrugada se guarda
toda para os cantores tristes

afinal continuo na torcida
ou decoro a bandeira do tédio
toda fruta esquecida
apodrece sobre a mesa

a lentidão dos dias
não diz muita coisa
mas cabe o necessário
em imagens de portas fechadas



#



O que fica pra trás

seiva do veneno que tomo
luto para perpetuar o brilho
das marcas da casa cada móvel
em seu devido lugar dia após dia
as raízes das teias seguras
não demonstram a fraqueza do inseto

parece que os totens
se construíram
sobre areia movediça
que as palavras ditas não diziam
o que pareciam dizer

há certo afogamento
que desperta os piores instintos
soterrados por litros de mercúrio
emoção que cria e destrói com
a mesma facilidade da arte da perda



#



It’s all over now, blackbird

pode deixar
que você gosta de howlin’ wolf
na cama eu não contarei
é só uma queimadura
uma bolha que logo estoura
e cicatriza sem pus
entre todos os surtos
os jogos de planejamento
a necessidade do adeus
ainda faço café para dois
e carrego pra cama
a distância é grande
mas você está aqui

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Caio Meira

Caio Meira é um poeta nascido em Goiânia em 1966 que vive no Rio de Janeiro desde 1984.
Graduou-se em psicologia e tem pós-graduação em Teoria Literária/Poética (UFRJ, 2002).
Além de textos teóricos e artigos sobre literatura, publicou quatro livros de poesia: No oco da mão (UERJ, 1993), Corpo Solo (Sette Letras, 1998),  Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer (Beco do Azougue, 2003) e Romance-
poemas (Circuito, 2013), que, em 2010, ganhou o prêmio Funarte para conclusão de obras literárias.
Atua também como tradutor da língua francesa, tendo como principais publicações as edições brasileira de dois livros do historiador e crítico literário Tzvetan Todorov: A literatura em Perigo e A beleza salvará o mundo, ambos publicados pela Editora Bertrand do Brasil (2009 e 2010).
Abaixo, quatro poemas recentes de sua autoria, publicados somente em seu blog e sua página do facebook.




não há mais poetas


não há um poeta no brasil, disse o cantor e
violonista, desgostoso com o país, afirmando
ter vergonha de estar aqui nesse momento, o
que meu amigo morto diria da presidenta, o que
meu amigo morto diria do lula, pergunta-se, não
há um poeta nesse momento, para esse momento
não há poetas vivos, não há, a  poesia está
morta, o que o poeta morto diria disso
tudo, da corrupção, dos escândalos, não
há mais poetas no país, talvez tenham fugido,
talvez tenham sido expulsos da nossa
república, talvez até existam aqueles que
se autoproclamam poetas, mas não, não há,
não pode mais haver geração como aquela, na
qual os poetas se infiltravam pelo poder, nas
embaixadas, no funcionalismo público, o pelé
só é poeta quando se cala, os poetas só podem
ser poetas quando se calam, isso é uma
pergunta, só quando se calam, porque as
pessoas estão prontas para ir às ruas vestidas
com a camisa da cbf, para ver se descolam a
volta dos militares, dos anos de chumbo, e os
poetas não podem ter nada a dizer sobre
isso, talvez o cantor esteja apenas nostálgico do
seu amigo, as saudades o fariam sentir vergonha
de ser brasileiro, por isso ele diz que num país
como esse nada mais pode ser criado, nenhuma
nova bossa, e se pretensos poetas dizem coisas,
escrevem, publicam, enchem as prateleiras
de livros de pretensa poesia, não há mais, não
pode mais haver poesia para este momento, afinal
a poesia é aquilo que os homens mandam pras
mulheres, namoradas, mães, filhas, aquela coisa
bonitinha, no dia internacional da mulher, e fica
resolvido o problema da violência contra a mulher,
com posts e palavrinhas bonitinhas, cheias de
flores, viva a mulher, isso sim é coisa de poeta, então
ao contrário do que diz o cantor, somos todos
poetas, ou então ele, o cantor, está certo, não
há poetas hoje, eles não circulam mais pela
república em que vivemos, os sebos estão
cheios de livros  de pretensa poesia, relegados
ao esquecimento,você diz, hoje, “ele é um
poeta” quando alguém diz alguma coisa
totalmente desconectada com aquilo  que
chamam de realidade, coisas sem peso, sonhadoras
e bonitinhas, e quando o vice-presidente se revela
poeta, é aquela coisa constrangedora, afinal é isso
ser poeta, ser totalmente omisso, mas “num escrito
escrito pra mim”, no caso, pra ele, produzir um
“embarquei na tua nau”, no comments please,
então, retomando o enunciado do cantor, não há
um poeta sequer para esse momento de ódio, de
sangue nos olhos, ou talvez os poetas mais cedo
ou mais tarde venham dar sua visão desse momento, os
poetas que não existem, mas quem sabe talvez
nos rondem como espectros, já que expulsos,
ainda outra vez expulsos, postos para fora, não
há mais poetas, exceto, possivelmente, os
espectrais, assim, se não há mais poetas, pode
ser que a poesia continue a ser fantasmagórica, e
surja de surpresa, como fazem os fantasmas, seres
suprarreais, ou infrarreais, de fora, por isso o cantor
talvez não consiga vê-los, pois o espectro da
poesia vai sempre nos rondar, principalmente
quando não esperarmos mais por eles



#


essa gente que desce hoje para a rua


é possível encontrar entre essa gente que desce hoje
para a rua, como desceram por 49 vezes de março
a junho de 64, como desceram empunhando o
estandarte carmim com o leão dourado para
protestar contra o divórcio, contra a reforma
agrária, contra o aborto, contra a ameaça do
comunismo, contra a corrupção dos valores da
família e da propriedade, em defesa da família, em
defesa da propriedade

como nos anos 50 desceram os que achavam que
o getúlio não podia ser candidato, se candidato não
podia ser eleito, se eleito não podia ser empossado,
se empossado era preciso ser impedido de governar

entre essa gente é possível encontrar aqueles que não
são eles mesmo corruptos, aqueles que não pagam
propina, que não fraudam o imposto de renda, que
não estacionam em fila dupla, que não são
funcionários-fantasma, que não se beneficiam de
alguma forma de nepotismo

é possível encontrar entre eles os que não se incomodam
que porteiros e domésticas ascendam socialmente, os
que não se opõem a que gays, lésbicas, trans e inters
tenham direitos civis, os que não tenham obsessão
por armas de fogo

entre essa gente que desce para a rua hoje, nesse dia
chuvoso, podemos encontrar os que não tenham como
ídolos o steve jobs, o bill gates ou o trump, os que não
tenham como paradigma o lobão e o roger, os que
não ignoram que as famílias marinho, frias, mesquita
e civita formam um consórcio criminoso, os que não se
miram no eike batista ou no lemann, os que não
acham que juízes são deuses, os que não tenham
como meta levar os filhos para passear na disney,
os que não se ressentem com o fato de que pobre
agora possa pegar avião

podemos encontrar entre essa gente os que não estão
com sangue nos olhos, os que não veem graça no
danilo gentilli, os que não acham o luciano huck
um cara bacana, os que não repercutem nas redes
sociais os textos do constantino, do azevedo, do
mainardi, os que não são olavetes, os que não
compartilham vídeos e expressões do bolsonaro,
do malafaia, do feliciano, os que não publicam
na sua timeline a reportagem de 1975 do amaral
neto, o repórter, elogiando a ditadura militar

é possível encontrar aqueles que, em 1888, não
se oporiam ao fim da escravidão, e que hoje
não perpetuam a escravidão em suas formas
veladas e escancaradas, aqueles que se chocam
com o fato de a mulher do cunha não ter sido
ainda presa, que se chocam também que
o episódio do helicóptero do pó tenha
desaparecido da mídia sem sofrer qualquer
tipo de investigação

creio ser possível encontrar quem não esteja a
serviço direto ou indireto da bancada da bala,
da bancada do boi, da bancada da bíblia, quem
não queira entregar o controle do país ao
congresso mais conservador e hipócrita da
história do país

enfim, é possível encontrar entre essa gente os
que descem para a rua apenas por amor, não
por ódio, ou por revanchismo, ou por desconsiderar
as regras do jogo

mas é bom levar uma lanterna




#



um poema político


em tese, todo poema é político, ainda que hesite
eternamente entre som e sentido, como dizia
valéry, e que se construa com palavras e não com
ideias, como indicou mallarmé, mas a fala é em
si uma forma de política, e mesmo o primeiro
balbucio infantil pode ser, em certo sentido,
um primeiro passo para o político, para a
habitação da cidade, mas o poema não pode
escapar à política, a se posicionar politicamente,
a ser uma posição da cidade, a uma forma de
ver a cidade, uma forma de habitar a cidade,
mesmo que não traga mais do que rosas e
o azul do céu, mesmo que fale de insetos
ou gaviões, ou de urubus, ou de bem-te-vis, ou
de corujas, ou dos gritos dos bugios, ou da
sexualidade bonobos, um poema pode ser
político mesmo sendo pornográfico, repleto
de cus, bucetas e caralhos, mesmo quando
seja apenas a fotografia, o instante, a descrição
de um casal, numa manhã chuvosa de domingo,
ambos vestidos com uma camiseta verde-e-amarela
do flamengo, uma camiseta comemorativa e não
a camiseta oficial do time, rubro-negra, uma
camiseta feita por marqueteiros, pela nike,
para ser ofertada a celebridades, para captar
recursos para o time, para dar determinada
identidade ao time, para que o time possa
vender bastante essa camiseta, não para que
essa camiseta represente as cores do time, mas
para que o time seja um produto vendável nas
lojas, nos shoppings centers, e esse casal, assim
vestido, possa descer numa manhã de domingo,
com seu cachorrinho, um lulu da pomerânia, ou
spitz alemão anão, e seus dois filhos fofos num
carrinho de bebês para gêmeos, empurrado por
uma babá negra, devidamente uniformizada, ela
também, devidamente paga, devidamente posta
em seu lugar, já que o chefe de família, o marido
vestido com a camisa que deveria ser rubro-negra,
mas que foi produzida pela nike nas cores verde-e-
amarela, esse marido é também vice-presidente
de finanças desse time popular, o flamengo,
além de empregar centenas de pessoas em
seu trabalho, além assinar a carteira de todos
os seus funcionários, exemplarmente, segundo
ele próprio, então essa imagem é a construção
de uma identidade política, é uma forma, exemplar,
segundo o próprio marido, de habitar a cidade
do rio de janeiro, ele de mãos dadas com a
esposa, puxando um lulu da pomerânia, pagando
seus impostos corretamente, vestindo seu tênis
nike, sua camiseta nike verde-e-amarela com
o brasão do flamengo, descendo numa manhã
de domingo para protestar contra a corrupção,
já que ele paga seus impostos, e paga a babá negra
devidamente uniformizada que empurra o carrinho
de bebês, mas que está livre para pedir demissão,
segundo ele, ela está livre nessa manhã de domingo,
em meio ao protesto no qual as demais pessoas
que ali protestam aproveitavam para beber
uma tacinha de champagne,ou também encenar
um enforcamento de um sujeito branco, mas com
o black-face, vestido com um saco de lixo, com uma
corda em torno do pescoço e sendo empunhado
como um estandarte por um outro sujeito, risonho,
vestido com uma camiseta também da nike, mas dessa
vez da cbf, e também enrolado numa bandeira
do brasil, ordem e progresso, podemos ler apesar
de as letras estarem invertidas, esse enforcamento
de um negro indigente então funcionando como
um estandarte, como um abre-alas, uma bandeira
simbólica do protesto para alcançar um país melhor,
no qual os empresários possam continuar a passear
e protestar numa manhã de domingo, de mãos dadas
com a esposa, passeando o lulu da pomerânia e tendo
seus filhos fofos conduzidos por uma babá negra
devidamente paga e uniformizada, livre para deixar
o emprego, livre para estar em meio a esse protesto
com taças de champagne e enforcamento de negros
indigentes, livre, livre, como o marido é livre para
se pronunciar posteriormente, já em seu apartamento,
informando ao mundo que ela é uma funcionária
livre para deixar o emprego, que ele ganha honestamente
a vida, que paga seus impostos e, por isso, é
um cidadão exemplar, e que ela, a babá da foto,
não a outra babá, ou as outras babás, ela que trabalha
apenas no fim-de-semana, e não a babá ou as babás
que trabalham durante a semana, e que devem ser
também devidamente pagas, mas que por alguma
razão não puderam, ela ou elas, comparecer
ao protesto, por estarem livres para ficar em casa,
assim como ele é livre para se defender em seu
perfil do facebook, explicando como é honesto
e cumpridor dos seus deveres, repudiando o
ódio e dizendo que está feliz em poder gerar
empregos, entre estes certamente o da babá
negra que ele levou para o protesto, para que
ele pudesse estar mais confortável para dar a
mão à sua esposa e passear o lulu da pomerânia
sem ter de empurrar seus filhos fofos no
carrinho de bebê para gêmeos, que ele está
feliz por participar da construção de um país
melhor, seguindo o lema de nossa bandeira,
ordem e progresso, feliz por trazer a esperança
de um novo país, e por isso ele se defende
no facebook, curiosamente iniciando o texto
no qual se defende, no qual defende o fato de ter
levado uma babá negra para o protesto, para
não ter de empurrar o carrinho de gêmeos com
seus filhos fofos, e assim poder passear o lulu
da pomerânia e dar a mão à sua esposa, curiosamente
ele inicia seu texto com a expressão si passarán!,
sim passarão!, invertendo o lema da luta contra
o fascismo, invertendo o lema antifascista, os
fascistas não passarão, mas para o empresário
sim, passarão, o protesto passará e nesse país
que ele está ajudando a construir se possa
descer para a rua numa manhã de domingo
vestindo a camisa da nike e seu tênis nike,
de mãos dadas com a esposa, passeando seu
lulu da pomerânia, com os filhos fofos sendo
empurrados num carrinho de bebê para gêmeos
por uma babá negra devidamente uniformizada



#


evidências


que peso pode ter uma palavra, qualquer
palavra, dentro de um poema, e que peso
pode ter essa palavra numa matéria jornalística,
ou econômica, ou política numa revista
semanal norte-americana pedindo ou
sugerindo a renúncia da presidente, fora,
fora, fim, término, pois supostamente
devemos acreditar em jornalistas e em
economistas, e em jornalistas-economistas,
em juízes e procuradores, em advogados,
em banqueiros, nos donos da mídia
do país, das revistas e canais de tv,
divididos, mas juntos, suas palavras propõem
nova divisão, novo arranjo produtivo,
nova repartição dos bens públicos, pois
dividimos, ao que parece, para
escolher de que lado ficamos, e também
para escolher de que lado não queremos
ficar, aplicando assim o método da
divisão, dividimos a cor da pele, a cor
da camisa, qual o dia da passeata que
devemos ir, o lado da cama que devemos
dormir, se mijamos em pé ou sentados,
dividimos para escolher a melhor porção,
a melhor fatia, fatiamos, retalhamos
para apontar o filho bastardo, o que
não tem direito a ter relógio de ouro,
o que não pode ter casa de praia, quem
pode e quem não pode dar palestra
de duzentos mil reais, quem pode
perambular bêbado pelo leblon, quem
pode e quem não pode cheirar cocaína,
você até pode tirar um repórter de dentro
do estadão, mas não pode tirar o estadão
de dentro do repórter, quem é pobre
deve ter alma de pobre e morar em
maricá, quem é filho de general pode
ter apartamento em paris, pode ter
amante teúda e manteúda em paris, pode
ter filha recebendo salário em gabinete
de deputado sem ir trabalhar, e se
você for jornalista de o globo, do estadão, da
folha, você terá de retirar alguns nomes da matéria,
se quiser eu tiro, você disse, e talvez
você tenha recebido um email vindo de
cima dizendo o que você pode e o que
não pode falar, que listas e que falas
você pode e mesmo deve dramatizar
na edição da noite, e para continuar do
lado certo da divisão você terá de
aprender como e quando se escandalizar,
você não poderá se escandalizar com
tudo, mas só com certas coisas, e então
nós, por nossa vez, aprendemos a
identificar essas evidências quando você
compartilha, prefere compartilhar a matéria
da the economist e não a da bbc, e
quando você examinar a crise na universidade
pública será, deverá ser sob a ótica de
um empresário, um redator, uma chefia, e
assim nos dividimos e nos pulverizamos
e nos chocamos com coisas tão diversas,
e então eu me lembro quando você me disse
que a propriedade privada é a mola mestra
da sociedade, o direito à propriedade é
o fundamento das relações sociais, e eu
fiquei tão chocado com essa fala, com
essa divisão que se interpunha entre dois
amigos, e tantos posts dizem que não se
deve romper amizades em função de
divergências políticas, e eu até acredito
nisso, mas é tão difícil enxergá-lo de
onde estou do outro lado desse abismo,
e as evidências são assim pistas que a
gente segue, como policiais e jornalistas
seguem pistas, nós também seguimos os
rastros dos jornalistas e dos policiais, e
dos juízes que também dividem, escolhem
lados, separam o joio do trigo, encontram
agulhas em palheiros, mas não veem as
raposas se aproximando do galinheiro