Caio Meira é um poeta nascido
em Goiânia em 1966 que vive no Rio de Janeiro desde 1984.
Graduou-se em
psicologia e tem pós-graduação em Teoria Literária/Poética (UFRJ, 2002).
Além de
textos teóricos e artigos sobre literatura, publicou quatro livros de poesia: No oco da mão (UERJ, 1993), Corpo Solo (Sette Letras, 1998), Coisas que o primeiro cachorro
na rua pode dizer (Beco
do Azougue, 2003) e Romance-
poemas (Circuito, 2013), que, em 2010, ganhou
o prêmio Funarte para conclusão de obras literárias.
Atua também
como tradutor da língua francesa, tendo como principais publicações as edições
brasileira de dois livros do historiador e crítico literário Tzvetan Todorov: A literatura em Perigo e A beleza salvará o mundo, ambos publicados pela Editora
Bertrand do Brasil (2009 e 2010).
Abaixo, quatro poemas recentes de
sua autoria, publicados somente em seu blog e sua página do facebook.
não há mais poetas
não há um poeta no brasil, disse o
cantor e
violonista, desgostoso com o país,
afirmando
ter vergonha de estar aqui nesse
momento, o
que meu amigo morto diria da
presidenta, o que
meu amigo morto diria do lula,
pergunta-se, não
há um poeta nesse momento, para
esse momento
não há poetas vivos, não há, a poesia está
morta, o que o poeta morto diria
disso
tudo, da corrupção, dos escândalos,
não
há mais poetas no país, talvez
tenham fugido,
talvez tenham sido expulsos da
nossa
república, talvez até existam
aqueles que
se autoproclamam poetas, mas não,
não há,
não pode mais haver geração como
aquela, na
qual os poetas se infiltravam pelo
poder, nas
embaixadas, no funcionalismo
público, o pelé
só é poeta quando se cala, os
poetas só podem
ser poetas quando se calam, isso é
uma
pergunta, só quando se calam,
porque as
pessoas estão prontas para ir às
ruas vestidas
com a camisa da cbf, para ver se
descolam a
volta dos militares, dos anos de
chumbo, e os
poetas não podem ter nada a dizer
sobre
isso, talvez o cantor esteja apenas
nostálgico do
seu amigo, as saudades o fariam
sentir vergonha
de ser brasileiro, por isso ele diz
que num país
como esse nada mais pode ser
criado, nenhuma
nova bossa, e se pretensos poetas
dizem coisas,
escrevem, publicam, enchem as
prateleiras
de livros de pretensa poesia, não
há mais, não
pode mais haver poesia para este
momento, afinal
a poesia é aquilo que os homens
mandam pras
mulheres, namoradas, mães, filhas,
aquela coisa
bonitinha, no dia internacional da
mulher, e fica
resolvido o problema da violência
contra a mulher,
com posts e palavrinhas bonitinhas,
cheias de
flores, viva a mulher, isso sim é
coisa de poeta, então
ao contrário do que diz o cantor,
somos todos
poetas, ou então ele, o cantor,
está certo, não
há poetas hoje, eles não circulam
mais pela
república em que vivemos, os sebos
estão
cheios de livros de pretensa poesia, relegados
ao esquecimento,você diz, hoje,
“ele é um
poeta” quando alguém diz alguma
coisa
totalmente desconectada com
aquilo que
chamam de realidade, coisas sem
peso, sonhadoras
e bonitinhas, e quando o
vice-presidente se revela
poeta, é aquela coisa
constrangedora, afinal é isso
ser poeta, ser totalmente omisso,
mas “num escrito
escrito pra mim”, no caso, pra ele,
produzir um
“embarquei na tua nau”, no comments
please,
então, retomando o enunciado do
cantor, não há
um poeta sequer para esse momento
de ódio, de
sangue nos olhos, ou talvez os
poetas mais cedo
ou mais tarde venham dar sua visão
desse momento, os
poetas que não existem, mas quem
sabe talvez
nos rondem como espectros, já que
expulsos,
ainda outra vez expulsos, postos
para fora, não
há mais poetas, exceto,
possivelmente, os
espectrais, assim, se não há mais
poetas, pode
ser que a poesia continue a ser
fantasmagórica, e
surja de surpresa, como fazem os
fantasmas, seres
suprarreais, ou infrarreais, de
fora, por isso o cantor
talvez não consiga vê-los, pois o
espectro da
poesia vai sempre nos rondar,
principalmente
quando não esperarmos mais por eles
#
essa gente que desce hoje para a rua
é possível encontrar entre essa
gente que desce hoje
para a rua, como desceram por 49
vezes de março
a junho de 64, como desceram
empunhando o
estandarte carmim com o leão
dourado para
protestar contra o divórcio, contra
a reforma
agrária, contra o aborto, contra a
ameaça do
comunismo, contra a corrupção dos
valores da
família e da propriedade, em defesa
da família, em
defesa da propriedade
como nos anos 50 desceram os que
achavam que
o getúlio não podia ser candidato,
se candidato não
podia ser eleito, se eleito não
podia ser empossado,
se empossado era preciso ser
impedido de governar
entre essa gente é possível
encontrar aqueles que não
são eles mesmo corruptos, aqueles
que não pagam
propina, que não fraudam o imposto
de renda, que
não estacionam em fila dupla, que
não são
funcionários-fantasma, que não se
beneficiam de
alguma forma de nepotismo
é possível encontrar entre eles os
que não se incomodam
que porteiros e domésticas ascendam
socialmente, os
que não se opõem a que gays,
lésbicas, trans e inters
tenham direitos civis, os que não
tenham obsessão
por armas de fogo
entre essa gente que desce para a
rua hoje, nesse dia
chuvoso, podemos encontrar os que
não tenham como
ídolos o steve jobs, o bill gates
ou o trump, os que não
tenham como paradigma o lobão e o
roger, os que
não ignoram que as famílias
marinho, frias, mesquita
e civita formam um consórcio
criminoso, os que não se
miram no eike batista ou no lemann,
os que não
acham que juízes são deuses, os que
não tenham
como meta levar os filhos para
passear na disney,
os que não se ressentem com o fato
de que pobre
agora possa pegar avião
podemos encontrar entre essa gente
os que não estão
com sangue nos olhos, os que não
veem graça no
danilo gentilli, os que não acham o
luciano huck
um cara bacana, os que não
repercutem nas redes
sociais os textos do constantino,
do azevedo, do
mainardi, os que não são olavetes,
os que não
compartilham vídeos e expressões do
bolsonaro,
do malafaia, do feliciano, os que
não publicam
na sua timeline a reportagem de
1975 do amaral
neto, o repórter, elogiando a
ditadura militar
é possível encontrar aqueles que,
em 1888, não
se oporiam ao fim da escravidão, e
que hoje
não perpetuam a escravidão em suas
formas
veladas e escancaradas, aqueles que
se chocam
com o fato de a mulher do cunha não
ter sido
ainda presa, que se chocam também
que
o episódio do helicóptero do pó
tenha
desaparecido da mídia sem sofrer
qualquer
tipo de investigação
creio ser possível encontrar quem
não esteja a
serviço direto ou indireto da
bancada da bala,
da bancada do boi, da bancada da
bíblia, quem
não queira entregar o controle do
país ao
congresso mais conservador e
hipócrita da
história do país
enfim, é possível encontrar entre
essa gente os
que descem para a rua apenas por
amor, não
por ódio, ou por revanchismo, ou
por desconsiderar
as regras do jogo
mas é bom levar uma lanterna
#
um
poema político
em tese, todo poema é político,
ainda que hesite
eternamente entre som e sentido,
como dizia
valéry, e que se construa com
palavras e não com
ideias, como indicou mallarmé, mas
a fala é em
si uma forma de política, e mesmo o
primeiro
balbucio infantil pode ser, em
certo sentido,
um primeiro passo para o político,
para a
habitação da cidade, mas o poema
não pode
escapar à política, a se posicionar
politicamente,
a ser uma posição da cidade, a uma
forma de
ver a cidade, uma forma de habitar
a cidade,
mesmo que não traga mais do que
rosas e
o azul do céu, mesmo que fale de
insetos
ou gaviões, ou de urubus, ou de
bem-te-vis, ou
de corujas, ou dos gritos dos
bugios, ou da
sexualidade bonobos, um poema pode
ser
político mesmo sendo pornográfico,
repleto
de cus, bucetas e caralhos, mesmo
quando
seja apenas a fotografia, o
instante, a descrição
de um casal, numa manhã chuvosa de
domingo,
ambos vestidos com uma camiseta
verde-e-amarela
do flamengo, uma camiseta
comemorativa e não
a camiseta oficial do time,
rubro-negra, uma
camiseta feita por marqueteiros,
pela nike,
para ser ofertada a celebridades,
para captar
recursos para o time, para dar
determinada
identidade ao time, para que o time
possa
vender bastante essa camiseta, não
para que
essa camiseta represente as cores
do time, mas
para que o time seja um produto
vendável nas
lojas, nos shoppings centers, e
esse casal, assim
vestido, possa descer numa manhã de
domingo,
com seu cachorrinho, um lulu da
pomerânia, ou
spitz alemão anão, e seus dois
filhos fofos num
carrinho de bebês para gêmeos,
empurrado por
uma babá negra, devidamente
uniformizada, ela
também, devidamente paga,
devidamente posta
em seu lugar, já que o chefe de
família, o marido
vestido com a camisa que deveria
ser rubro-negra,
mas que foi produzida pela nike nas
cores verde-e-
amarela, esse marido é também
vice-presidente
de finanças desse time popular, o
flamengo,
além de empregar centenas de
pessoas em
seu trabalho, além assinar a
carteira de todos
os seus funcionários, exemplarmente,
segundo
ele próprio, então essa imagem é a
construção
de uma identidade política, é uma
forma, exemplar,
segundo o próprio marido, de
habitar a cidade
do rio de janeiro, ele de mãos
dadas com a
esposa, puxando um lulu da
pomerânia, pagando
seus impostos corretamente,
vestindo seu tênis
nike, sua camiseta nike
verde-e-amarela com
o brasão do flamengo, descendo numa
manhã
de domingo para protestar contra a
corrupção,
já que ele paga seus impostos, e
paga a babá negra
devidamente uniformizada que
empurra o carrinho
de bebês, mas que está livre para
pedir demissão,
segundo ele, ela está livre nessa
manhã de domingo,
em meio ao protesto no qual as
demais pessoas
que ali protestam aproveitavam para
beber
uma tacinha de champagne,ou também
encenar
um enforcamento de um sujeito
branco, mas com
o black-face, vestido com um saco
de lixo, com uma
corda em torno do pescoço e sendo
empunhado
como um estandarte por um outro
sujeito, risonho,
vestido com uma camiseta também da
nike, mas dessa
vez da cbf, e também enrolado numa
bandeira
do brasil, ordem e progresso,
podemos ler apesar
de as letras estarem invertidas,
esse enforcamento
de um negro indigente então
funcionando como
um estandarte, como um abre-alas,
uma bandeira
simbólica do protesto para alcançar
um país melhor,
no qual os empresários possam
continuar a passear
e protestar numa manhã de domingo,
de mãos dadas
com a esposa, passeando o lulu da
pomerânia e tendo
seus filhos fofos conduzidos por
uma babá negra
devidamente paga e uniformizada,
livre para deixar
o emprego, livre para estar em meio
a esse protesto
com taças de champagne e
enforcamento de negros
indigentes, livre, livre, como o
marido é livre para
se pronunciar posteriormente, já em
seu apartamento,
informando ao mundo que ela é uma
funcionária
livre para deixar o emprego, que
ele ganha honestamente
a vida, que paga seus impostos e,
por isso, é
um cidadão exemplar, e que ela, a
babá da foto,
não a outra babá, ou as outras
babás, ela que trabalha
apenas no fim-de-semana, e não a
babá ou as babás
que trabalham durante a semana, e
que devem ser
também devidamente pagas, mas que
por alguma
razão não puderam, ela ou elas,
comparecer
ao protesto, por estarem livres
para ficar em casa,
assim como ele é livre para se
defender em seu
perfil do facebook, explicando como
é honesto
e cumpridor dos seus deveres,
repudiando o
ódio e dizendo que está feliz em
poder gerar
empregos, entre estes certamente o
da babá
negra que ele levou para o
protesto, para que
ele pudesse estar mais confortável
para dar a
mão à sua esposa e passear o lulu
da pomerânia
sem ter de empurrar seus filhos
fofos no
carrinho de bebê para gêmeos, que
ele está
feliz por participar da construção
de um país
melhor, seguindo o lema de nossa
bandeira,
ordem e progresso, feliz por trazer
a esperança
de um novo país, e por isso ele se
defende
no facebook, curiosamente iniciando
o texto
no qual se defende, no qual defende
o fato de ter
levado uma babá negra para o
protesto, para
não ter de empurrar o carrinho de
gêmeos com
seus filhos fofos, e assim poder
passear o lulu
da pomerânia e dar a mão à sua
esposa, curiosamente
ele inicia seu texto com a
expressão si passarán!,
sim passarão!, invertendo o lema da
luta contra
o fascismo, invertendo o lema
antifascista, os
fascistas não passarão, mas para o
empresário
sim, passarão, o protesto passará e
nesse país
que ele está ajudando a construir
se possa
descer para a rua numa manhã de
domingo
vestindo a camisa da nike e seu
tênis nike,
de mãos dadas com a esposa,
passeando seu
lulu da pomerânia, com os filhos
fofos sendo
empurrados num carrinho de bebê
para gêmeos
por uma babá negra devidamente
uniformizada
#
evidências
que peso pode ter uma palavra,
qualquer
palavra, dentro de um poema, e que
peso
pode ter essa palavra numa matéria jornalística,
ou econômica, ou política numa
revista
semanal norte-americana pedindo ou
sugerindo a renúncia da presidente,
fora,
fora, fim, término, pois
supostamente
devemos acreditar em jornalistas e
em
economistas, e em
jornalistas-economistas,
em juízes e procuradores, em
advogados,
em banqueiros, nos donos da mídia
do país, das revistas e canais de
tv,
divididos, mas juntos, suas
palavras propõem
nova divisão, novo arranjo
produtivo,
nova repartição dos bens públicos,
pois
dividimos, ao que parece, para
escolher de que lado ficamos, e
também
para escolher de que lado não
queremos
ficar, aplicando assim o método da
divisão, dividimos a cor da pele, a
cor
da camisa, qual o dia da passeata
que
devemos ir, o lado da cama que
devemos
dormir, se mijamos em pé ou sentados,
dividimos para escolher a melhor
porção,
a melhor fatia, fatiamos,
retalhamos
para apontar o filho bastardo, o
que
não tem direito a ter relógio de
ouro,
o que não pode ter casa de praia,
quem
pode e quem não pode dar palestra
de duzentos mil reais, quem pode
perambular bêbado pelo leblon, quem
pode e quem não pode cheirar
cocaína,
você até pode tirar um repórter de
dentro
do estadão, mas não pode tirar o
estadão
de dentro do repórter, quem é pobre
deve ter alma de pobre e morar em
maricá, quem é filho de general
pode
ter apartamento em paris, pode ter
amante teúda e manteúda em paris,
pode
ter filha recebendo salário em
gabinete
de deputado sem ir trabalhar, e se
você for jornalista de o globo, do
estadão, da
folha, você terá de retirar alguns
nomes da matéria,
se quiser eu tiro, você disse, e
talvez
você tenha recebido um email vindo
de
cima dizendo o que você pode e o
que
não pode falar, que listas e que
falas
você pode e mesmo deve dramatizar
na edição da noite, e para
continuar do
lado certo da divisão você terá de
aprender como e quando se
escandalizar,
você não poderá se escandalizar com
tudo, mas só com certas coisas, e
então
nós, por nossa vez, aprendemos a
identificar essas evidências quando
você
compartilha, prefere compartilhar a
matéria
da the economist e não a da bbc, e
quando você examinar a crise na
universidade
pública será, deverá ser sob a
ótica de
um empresário, um redator, uma
chefia, e
assim nos dividimos e nos
pulverizamos
e nos chocamos com coisas tão
diversas,
e então eu me lembro quando você me
disse
que a propriedade privada é a mola
mestra
da sociedade, o direito à
propriedade é
o fundamento das relações sociais,
e eu
fiquei tão chocado com essa fala,
com
essa divisão que se interpunha
entre dois
amigos, e tantos posts dizem que
não se
deve romper amizades em função de
divergências políticas, e eu até
acredito
nisso, mas é tão difícil enxergá-lo
de
onde estou do outro lado desse
abismo,
e as evidências são assim pistas
que a
gente segue, como policiais e
jornalistas
seguem pistas, nós também seguimos
os
rastros dos jornalistas e dos
policiais, e
dos juízes que também dividem,
escolhem
lados, separam o joio do trigo,
encontram
agulhas em palheiros, mas não veem
as
raposas se aproximando do
galinheiro