sábado, 13 de maio de 2017

Ozias Filho

Ozias Filho é um poeta brasileiro nascido no Rio de Janeiro em 1962. Formado em Jornalismo pela Faculdade Hélio Alonso e em Fotografia pela Pontifícia Universidade Católica, ambas no RJ. É pós-graduado em Edição e Novos Suportes Digitais, pela Universidade Católica Portuguesa.
Trabalhou no jornal “O Primeiro de Janeiro” (Porto).
Lançou em 2001, pela Editora Alma Azul, o livro Poemas do Dilúvio.
Idealizou e protagonizou, na Casa da América Latina, em Lisboa, vários projetos: Uma Hora Com os Poetas, Noites em Pasárgada e Neruda com Amor.
Foi de 1999 a 2011 o responsável da Editora Vozes em Portugal.
Em 2005 lançou, pela Edições Pasárgada, o livro Páginas Despidas.
Em 2006 participou na coletânea de contos Con-to-Con-ti-go, da Livrododia Editores, e, em 2008 publicou pela mesma editora o livro de fotografias Santa Cruz. Participou em vários projetos ligados à fotografia, produzindo capas de livros e revistas especializadas em arquitetura e artes.
Em 2010 foi um dos escritores da antologia de contos Só agora vejo crescer em mim as mãos de meu pai, das Edições Pasárgada, da qual é o fundador e Editor. No ano seguinte editou por este selo o livro O relógio avariado de Deus.
Em 2013 publicou, em parceria com o poeta mineiro Iacyr Anderson Freitas, o livro Ar de Arestas (livro finalista na categoria Poesia nos prêmios Portugal Telecom de Literatura e Jabuti, em 2014); as fotos desta obra estiveram expostas no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, em Juiz de Fora, na Casa da América Latina, em Lisboa, e na Fundação Marques de Pombal, em Oeiras.
Em 2014 publicou Insulares, da Editora Livros de Ontem. Recentemente publicou, pela Texto Território Editores, a edição brasileira de O relógio avariado de Deus.
Por viver na “fronteira” entre duas nações que lhe são muito próximas (Brasil e Portugal), pode-se perceber que sua escrita é algo híbrida, transitando ora para os brasileirismos que lhe são natos, ora para a língua matriz que herdou há vinte e cinco anos, ao mudar-se para Portugal.
Os poemas a seguir apresentados foram selecionados dos seus livros: Poemas do dilúvio, Páginas despidas, O relógio avariado de Deus, Insulares e do inédito Poemas infantis para quando eu for grande.



do livro Poemas do dilúvio, Editora Alma Azul (Coimbra/2001)


O corpo da escrita

esse olhar sonâmbulo cambaleia no desconforto bêbado de um carro velho. entre amenidades errantes temos a noção de que o amor é possível no reflexo da lua que tudo promete e transforma homens em quase nada. poetas de infortúnios. homens-lobos amestrados. e a loba é você. a loba é o verbo. a loba é a fome. o olhar é fome. o amor sucumbe à fome. o amor é fome. a estranha coreografia do improviso é fome. onde a roupa é mero invólucro corporal.

a emoção é inevitável. onde a lágrima pede licença à vergonha e o orgasmo escorre silencioso do lado direito da perna esquerda. sou, mais uma vez, o ejaculador precocemente virgem. por um momento consigo acreditar que o meu único mundo é você e que o mercúrio dessas estrelas artificias é o paraíso. o coração pulsa no pénis, no peito, no pescoço. o corpo inteiro grita numa festa contida, sob as luzes da lua, dos holofotes urbanos e dos olhares curiosos. e no vazio do êxtase tudo se declara.




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o mar redescobre o marulho bem compassado das marés. os pássaros ensaiam os primeiros acordes do dia. a sabedoria popular (que acabo de inventar pois faz falta ao poema) vê no canto ainda noctívago das aves o prenúncio de um dia quente. o homem calvo, como em todas as manhãs, de frio ou de calor, corre pontualmente atrasado para apanhar o primeiro comboio, que não espera pelos distraídos. e nós no limbo da noite com o dia deixamo-nos vencer despidos pelo sono dos justos. sono sem cama. sono acordado. sono com dezenas de quilómetros por atravessar e escassas horas para dormir.
tudo para encontrá-la entre a morfina do sono e o labirinto de memórias já vividas, enquanto o despertador à espreita, pronto a tocar, me permitir esta visita guiada ao seu quarto. no sonho permito-me ser narciso e encontro em ti o meu reflexo fora de foco. não me venham dizer que só os opostos se atraem. és a parte visível da minha verdade e do meu logro.




do livro Páginas despidas, Edições Pasárgada (Cascais/2005)


Génesis


e no princípio
era o silêncio

e Deus
criou o verbo

e aprisionou para sempre
o silêncio dentro do homem




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Apocalipse


é preciso
implodir a palavra

desconstruir
o edifício

libertar
o silêncio




do livro O relógio avariado de Deus, Edições Pasárgada (Cascais/2011) – Texto Território Editora (Rio de Janeiro/2016)


A caixa

por dentro
da caixa fechada
quebrou-se
a camada de vidro

recompor
a coisa quebrada
por dentro
como?




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Maria


a ficha ainda não caiu

quando chegar a casa
abrir o quarto e deparar
com a mochila por arrumar
dar-me-ei conta
que ela foi baleada
no lado direito do tórax
quando descia as escadas
da estação dos Anjos

a sua última viagem de metrô
foi a primeira




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Corpo fica mais de cinco horas em rua do Centro


em frente ao Teatro Municipal de São Paulo
estendido na Rua Xavier de Toledo
atropelado em frente ao Teatro Municipal de São Paulo
o corpo ficou cinco horas e meia
em frente ao Teatro Municipal de São Paulo
atropelado pelo ônibus da Viação Santa Brígida
em frente ao Teatro Municipal de São Paulo
foi recolhido pelo Instituto Médico Legal
já passavam às 19 horas
às 22 estreia As Bacantes
no Teatro Municipal de São Paulo




do livro Insulares, Livros de Ontem Editora (Lisboa/2014)


o que falta dizer não escrevo
definitivamente, não consigo
sou impotente perante esta alvura

não sangro sobre o papel
não caibo nestas margens
que desconfiam da minha
ingenuidade

apalavro-me sob elas




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esta pretensão
invisível

(Senhor)

de registrar
as pequenas pérolas
perecíveis




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ninguém nota quando choramos à chuva
ninguém nota quando choramos a chuva




do livro Poemas infantis para quando eu for grande (a ser publicado em 2017)


O cofre


o que guardo no coração?

pedaços de bilhetes para muitos lugares
pedaços de bilhetes para muitos lugares na memória
pedaços de bilhetes para muitos lugares na memória
que eu não quero esquecer

tampinhas de Coca-Cola com a bandeira do Brasil
tampinhas de Coca-Cola com as bandeiras dos países da América do Sul
tampinhas de Coca-Cola com as bandeiras de todos os países do Mundo
(muita Coca-Cola eu bebi, meu Deus, por causa das bandeiras)

a caixa de costura em madeira da minha mãe
a caixa de costura em madeira com a minha coleção de ostras
a caixa de costura em madeira com os barulhos do mar
a caixa de costura em madeira que a minha mãe silenciou na lata de lixo


o que guardo no coração?


andar de bicicleta na rampa do mercado de bairro
o braço partido na rampa do mercado de bairro
a bronca da mãe que avisara sobre a rampa do mercado de bairro
o gesso assinado do braço partido na rampa do mercado de bairro

a descoberta com a prima do algo proibido
a chinelada no rabo por causa do algo proibido
o elevador da batcaverna no improviso do poste da rua
a chinelada no rabo como prémio pela minha queda do poste da rua
fumar escondido na casa de banho das meninas
fumar sem a chinelada no rabo
a minha mãe nunca soube do cigarro, nem das meninas

o poema que fiz para Alice
o poema que entreguei para Alice à porta do bar na Rua Farani
o beijo na boca que ganhei de Alice por causa do poema

o que guardo no coração?

é bem mais do que consigo guardar numa vida de papéis
não cabe nesta página ou na caixa de sapatos
arrumada num canto qualquer da despensa
está algures, sépia, vivo e por vezes fechado
em cofre há muito esquecido

o que guardo
não é como uma fotografia de Itabira na parede

mas como dói

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