Flávio Morgado é um poeta nascido no Rio de Janeiro em 1989.
É autor de Um caderno de capa verde
(7Letras, 2012) e Uma nesga de sol a mais (7Letras, 2016).
Foi publicado em
algumas antologias no Brasil e fora, sendo a mais recente É agora como nunca - antologia incompleta da poesia contemporânea (Companhia
das Letras, 2017), organizada por Adriana Calcanhotto.
Os poemas abaixo foram
selecionados de seus dois livros.
(foto de Raíssa Figueiredo)
Brás de pina
brás
de pina
janelas
atentas
muros
tristes e
ladeira
igreja
ladeira-travessia,
prometeu
subir, nunca chega
saudade
de uma vida
que
nunca passou
rio
arapogi
sem
flores
(índio
sem cocar)
outras
cores:
verde
aposentado
azul
a filha morreu antes do casamento
amarelo
jogou no bangu
branco
foi muito rico e perdeu tudo
as
histórias se escrevem nos muros
(por
isso eu chorava na porta de edson borracha)
muro-rosto
limo-lágrima
a
casa de minha vó
bangalô,
tijolinho
portão-barulho,
o
jardim se salva nas plantas que a mão ainda rega
o
marido se foi cedo demais
casas
lidas
mundo
à janela
e
não precisávamos de mais nada
todos
se sabiam
pela
rua (sem entrar)
brás
de pina
não
se diz –
se
debruça no dito –
e
morre-se em varanda
#
Do
sonho das coisas
sei que acordo não porque abri os olhos
ou sinto que não estou divagando
pelos delírios do entressonho.
pelo contrário,
é quando vejo a sombra de meu livro
sobre a parede como um livro aberto,
e o desperto do pássaro que ele pensava ser
que eu sei da tristeza de acordar.
ou sinto que não estou divagando
pelos delírios do entressonho.
pelo contrário,
é quando vejo a sombra de meu livro
sobre a parede como um livro aberto,
e o desperto do pássaro que ele pensava ser
que eu sei da tristeza de acordar.
#
Instruções ao esboço de um quadro
primeiro
preencher
o
brancocomo branco
para
se reconhecer o que é a possibilidade.
o
risco em vermelho
diminuias
chances e impõe
recomeço
um
canto negro
(a
outra margem do branco)
encaminha
ao infinito e ao talvez.
de
limite, circule a iluminação do azul
(desenhe
uma asa maior que o céu)
deixe
a tinta tingir-se a si
em
relevo
em
erro
como
mania de perfeição
(“estive
aqui...”)
não
assine. entregue à espera
deixe
o quadro se apalpar
-
a emoção corrige a regra.
#
Os seios de Halla Bhairi
para Gaza
não
crescerão
os
seios de Halla Bhairi.
não
os veremos
desabrochar
-
os próprios seios visam pétalas
que
não despontam
e
os de Halla Bhairi
nunca
despontarão
(a
jovem menina morta)
não
terão olhos
os
seios de Halla Bhairi
que
mirem as mãos cuidadosas
de
outro
jovem
palestino
ou
judeu
-
porque a paz é surpreendente.
não
sentirá o peso de seus
seios,
não
os adornará com óleos,
não
os deixará seminus
os
seios de Halla Bhairi
a
saber o que se ganha (e o que se perde)
por
ter seios, Halla Bhairi.
não
amamentarão
os
seios de Halla Bhairi
um
outro futuro (que talvez fosse livre)
porque
interferimos a rota de seus
seios,
Halla Bhairi
e
ferir o futuro
é
não parar de ferir o futuro
-
matamos o filho de Halla Bhairi.
por
isso, crescerá em nós
os
seios de Halla Bhairi
o
silencioso seio, o desmedido seio
ao
peso de nossa Gaza:
ao
homem imposto pela voz
sob
a surdez
à
mão ao gatilho que desfaz
o
aperto
ao
lucro ao revés
do
preço
do
afeto
estarão
nus
os
seios de Halla Bhairi
o
silencioso seio, o reconhecível seio
ao
peso de nossa casa.
e
estarão a sós
(em nós)
à
revelia do que esquecemos
e
incompletos e interrompidos
fazemos
à guerra
-
denegamos o amadurecimento.
#
A voz (ou esporro) de ferreira gullar
não
viu sua morte um distraído.
não
estava
aquele
ensolarado dezembro
(como uma toalha
úmida
sobre
a avenida atlântica)
e
do primeiro andar
o
afeto da porta
da
casa de avô
frustrou
em grito:
“Porra!
Cadê, porra?!”
(a
voz do poema sujo)
eu
o vi velho
mais
que velho
velho
velho
a
vida contra o muro.
já
vinha, desmonte fluido,
tornando-se
pla
ní
cie
desde
os longos fios de cabelo
-
estalactites,
magras
e calmas
como
sua permanência.
ainda
o homem frente à morte:
sua
voz de poeta, de incansável espanto
sua
voz de carne e pus, de exílio e de perda
sua
voz mais que turva
e
acima de tudo, suja
-
que sempre foi teu outro signo de pureza.
quanto
real paga a vida?
guardou
sua memória
no
corpo
no
outro
no
novo
em
folha
e
sabe que vamos carregar seu fóssil
(aquele
vestígio à espera da voz)
ubíquo
voo dos versos,
ferreira
gullar resiste.
resiste
no medo em lamoneda
entre
o punho e a queda
entre
homens e filhos
coando
delírios e espantos
na
cidade que é o indivíduo.
resiste
na perenidade do fato frente ao poema,
como
uma vez desperta
desesperada
e
de dentro do tempo.
convicta,
como
um anjo que viu cair as asas,
atenta,
como
um esteta da própria participação,
a
poesia é mesmo um milagre
que
ainda se alonga aos incrédulos.
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