terça-feira, 19 de setembro de 2017

Flávio Morgado

Flávio Morgado é um poeta nascido no Rio de Janeiro em 1989. É autor de Um caderno de capa verde (7Letras, 2012)  e Uma nesga de sol a mais (7Letras, 2016).
Foi publicado em algumas antologias no Brasil e fora, sendo a mais recente É agora como nunca - antologia incompleta da poesia contemporânea (Companhia das Letras, 2017), organizada por Adriana Calcanhotto.
Os poemas abaixo foram selecionados de seus dois livros.


(foto de Raíssa Figueiredo


Brás de pina


brás de pina
janelas atentas
muros tristes e
ladeira igreja

ladeira-travessia,
prometeu subir, nunca chega
saudade de uma vida
que nunca passou

rio arapogi
sem flores
(índio sem cocar)

outras cores:
verde aposentado
azul a filha morreu antes do casamento
amarelo jogou no bangu
branco foi muito rico e perdeu tudo

as histórias se escrevem nos muros
(por isso eu chorava na porta de edson borracha)

muro-rosto
limo-lágrima

a casa de minha vó
bangalô, tijolinho
portão-barulho,
o jardim se salva nas plantas que a mão ainda rega
o marido se foi cedo demais

casas lidas
mundo à janela
e não precisávamos de mais nada
todos se sabiam
pela rua (sem entrar)

brás de pina
não se diz –
se debruça no dito –

e morre-se em varanda




#




Do sonho das coisas

sei que acordo não porque abri os olhos
ou sinto que não estou divagando
pelos delírios do entressonho.
pelo contrário,
é quando vejo a sombra de meu livro
sobre a parede como um livro aberto,
e o desperto do pássaro que ele pensava ser
que eu sei da tristeza de acordar.




#




Instruções ao esboço de um quadro


primeiro preencher
o brancocomo branco

para se reconhecer o que é a possibilidade.

o risco em vermelho
diminuias chances e impõe
recomeço

um canto negro
(a outra margem do branco)
encaminha ao infinito e ao talvez.

de limite, circule a iluminação do azul
(desenhe uma asa maior que o céu)

deixe a tinta tingir-se a si
em relevo
em erro
como mania de perfeição
(“estive aqui...”)


não assine. entregue à espera

deixe o quadro se apalpar



- a emoção corrige a regra.




#




Os seios de Halla Bhairi
para Gaza


não crescerão
os seios de Halla Bhairi.

não os veremos
desabrochar
- os próprios seios visam pétalas
que não despontam

e os de Halla Bhairi
nunca despontarão

(a jovem menina morta)

não terão olhos
os seios de Halla Bhairi
que mirem as mãos cuidadosas
de outro
jovem palestino
ou judeu
- porque a paz é surpreendente.

não sentirá o peso de seus
seios,
não os adornará com óleos,
não os deixará seminus
os seios de Halla Bhairi
a saber o que se ganha (e o que se perde)
por ter seios, Halla Bhairi.

não amamentarão
os seios de Halla Bhairi
um outro futuro (que talvez fosse livre)

porque interferimos a rota de seus
seios, Halla Bhairi

e ferir o futuro
é não parar de ferir o futuro
- matamos o filho de Halla Bhairi.


por isso, crescerá em nós
os seios de Halla Bhairi

o silencioso seio, o desmedido seio
ao peso de nossa Gaza:

ao homem imposto pela voz
sob a surdez
à mão ao gatilho que desfaz
o aperto
ao lucro ao revés
do preço


do afeto
estarão nus
os seios de Halla Bhairi

o silencioso seio, o reconhecível seio
ao peso de nossa casa.

e estarão a sós
             (em nós)
à revelia do que esquecemos
e incompletos e interrompidos

fazemos à guerra


- denegamos o amadurecimento.




#




A voz (ou esporro) de ferreira gullar


não viu sua morte um distraído.

não estava
aquele ensolarado dezembro
                          (como uma toalha úmida
sobre a avenida atlântica)
e do primeiro andar
o afeto da porta
da casa de avô
frustrou em grito:

“Porra! Cadê, porra?!”

(a voz do poema sujo)

eu o vi velho
mais que velho
velho velho
a vida contra o muro.

já vinha, desmonte fluido,
tornando-se pla
cie

desde os longos fios de cabelo
- estalactites,
magras e calmas
como sua permanência.

ainda o homem frente à morte:

sua voz de poeta, de incansável espanto
sua voz de carne e pus, de exílio e de perda
sua voz mais que turva
e acima de tudo, suja
- que sempre foi teu outro signo de pureza.

quanto real paga a vida?

guardou sua memória
no corpo
no outro
no novo
em folha

e sabe que vamos carregar seu fóssil

(aquele vestígio à espera da voz)

ubíquo voo dos versos,
ferreira gullar resiste.

resiste no medo em lamoneda
entre o punho e a queda
entre homens e filhos
coando delírios e espantos
na cidade que é o indivíduo.

resiste na perenidade do fato frente ao poema,
como uma vez desperta
desesperada
e de dentro do tempo.

convicta,
como um anjo que viu cair as asas,
atenta,
como um esteta da própria participação,

a poesia é mesmo um milagre
que ainda se alonga aos incrédulos.

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