segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Rita Isadora Pessoa

Rita Isadora Pessoa é uma poeta nascida no Rio de Janeiro em 1984. Graduada em Psicologia e não graduada em Estudos de Mídia, estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em Teoria Psicanalítica (UFRJ) e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada (UFF), onde estuda o duplo em sua modalidade animal e temas como melancolia, traço melancólico no texto literário e heteronímia em autores como Sylvia Plath, Virgílio de Lemos, Franz Kafka e Herman Melville.
Trabalha como tradutora, revisora, astróloga e taróloga.
Seu primeiro livro de poesia, “A vida nos vulcões”, foi lançado no final de agosto de 2016, pela Editora Oito e Meio.
Abaixo, vocês conferem uma seleção com cinco poemas de sua autoria.



mefistófeles para iniciantes


enquanto você está preocupado
com a musculatura do poema
      eu limpei sua ossada
      com os dentes
e povoada de arcos
e colunas        e pilastras
aquieto uma arquitetura clássica
                entre os braços
ensinando demonologia contemporânea
para a caravana medieval aqui do apartamento ao lado
                                       jurando de pés juntos
que o século dezenove nem terminou ainda

enquanto você diz algo sobre fuzis acelerados
sobre não ir-se gentilmente para dentro da noite
              eu me deito quieta nua
sobre a impenetrabilidade fumegante
  deste chão de pedra
             considerando
entrar na madrugada
como se entra num vestido
                 prensado a vácuo

[como se entrar em algo
                      fosse de fato
                           a questão

e não apenas o início cósmico
         de um grande problema]




#




diário do ano do macaco de fogo

You transform into a tiger before their eyes.
Your very being commands an awe that makes
consulting the oracle unnecessary.
Hexagram Forty-Nine/Line Five: The revolution (I CHING)

se como celan
                            eu tivesse a certeza
de que os poemas estão a caminho
se ao menos eu não tivesse
fundado toda uma mulher
       [uma mulher inteira
       garganta glote ancas
            sexo tornozelos]
      apenas em torno
de uma palavra infeccionada
                      se eu não tivesse
                     as mãos gretadas
 como uma figura mitológica
mal-sucedida
em suas peripécias amorosas
        eu poderia sim acreditar
            [como se a minha vida
      dependesse disso de fato]
 no efeito de luz
na voragem súbita
no obscurecimento
que se segue
     e se repete
            e se repete
nesse projeto desconjuntado
                     de revolução
mas é que eu vejo coisas
vejo coisas em ti e neles
constato o que há de cínico -- o símio
que mimetiza o desfecho ígneo
                      e não
eu não sei mesmo manusear o objeto isqueiro
                          não tenho habilidade
para os grandes gestos incendiários
      estou aguardando  
 p a c i e n t e m e n t e
      a grande água
como alguém que gesta
um filho querido
na cicatriz íntima
de seu próprio útero
mas se aterroriza diante
da perspectiva brutal
     do nascimento
       de um grito




#




dos vulcões em miniatura


   o poema está sempre na iminência
                    de uma parada perigosa
 enganchando-se à maneira do amor
                    ao fazer eclodir na pele



aquilo que inflama
        aceso

             e que



   com um estampido
                          logo
                   apaga-se




#




fauno


cultivamos ciclones
sazonais como
veleidades que pendem
da boca, as mancuspias
de cortázar:
um compósito bestial
perfeito.
nenhuma translação
escapa
à nossa disco-voragem
[lampedusa]
                        de ilha.


um ouriço albino desloca-se
lentamente
através dos meus dedos
transparentes;
                              [ há ]
um animal sagrado
sentado em lótus
que nasce do rastro
de teus cascos,
um centauro,
atravessa o peito
num salto
[flecha & alvo]
em casamento trágico
e perfeito.

porque você invoca em mim
a paixão mítica,     
ancestralidade da        carne,
que é a gênese cosmogônica
do universo               inteiro,
me desvela arquipélagos urbanos
entre prédios, ruas, entre seixos.
tenho a pele infectada de ti,
doença desconhecida que me
tangencia:
uma cicatriz desenhada
com os dedos.

[você],
você integra
my very own bestiário
contemporâneo
e me ensina pacientemente
duas ou três coisas

                 sobre a pele das ostras
e a minha própria morte.




#




o problema do vermelho nos objetos


I-

sobre o problema
dos objetos
e o teorema das superfícies
sobrepostas com texturas
                       enganosas
: o atrito impede
a cálida aderência
de um volume
sobre um sistema
mecanicamente isolado
do resto do mundo.
esse problema --
o problema fundamental
do mundo --
         é que
teus volumes drapeados
        acumulam-se
[inteiriços e impalpáveis]
sobre os móveis
depois que te vai
e me pego
timidamente voraz
na tarefa
de assomar tua forma
com dedos inábeis,
esculpir tua voz
com fonemas de pele eriçada,
pelo sopro sintático quente
da tua língua materna emudecida,
substituída por equívoco

por grotescos saltos
           de tradução.


II-

presto incontinente
atenção ao vermelho
que ondula nas falsas
       constelações
de luz artificial na parede
       da sala térrea
quando acontece de um carro
       a t r a v e s s a r
a fachada do teu sagrado
    edifício de pastilhas
    [de gosto duvidoso]
-- esse jogo de luzes e sombras
a que alguns objetos
                se prestam

quando ninguém mais se importa.

                 e durmo com

o problema dos objetos
e de teu volume drapeado
               sobre as coisas,
o que se acumula à revelia
                      do sonho
                             e da terrível

bidimensionalidade dos sonhos.

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