Rita Isadora Pessoa é
uma poeta nascida no Rio de Janeiro em 1984. Graduada em Psicologia e não
graduada em Estudos de Mídia, estudou a poeta Sylvia Plath no mestrado em
Teoria Psicanalítica (UFRJ) e é atualmente doutoranda em Literatura Comparada
(UFF), onde estuda o duplo em sua modalidade animal e temas como melancolia, traço melancólico no texto
literário e heteronímia em autores como Sylvia Plath, Virgílio de Lemos, Franz
Kafka e Herman Melville.
Trabalha
como tradutora, revisora, astróloga e taróloga.
Seu
primeiro livro de poesia, “A vida nos vulcões”, foi lançado no final de agosto
de 2016, pela Editora Oito e Meio.
Abaixo, vocês
conferem uma seleção com cinco poemas de sua autoria.
mefistófeles
para iniciantes
enquanto você está preocupado
com a musculatura do poema
eu limpei sua ossada
com os dentes
e povoada de arcos
e colunas e pilastras
aquieto uma arquitetura clássica
entre os braços
ensinando demonologia
contemporânea
para a caravana medieval aqui do
apartamento ao lado
jurando
de pés juntos
que o século dezenove nem
terminou ainda
enquanto você diz algo sobre
fuzis acelerados
sobre não ir-se gentilmente para
dentro da noite
eu me deito quieta nua
sobre a impenetrabilidade
fumegante
deste chão de pedra
considerando
entrar na madrugada
como se entra num vestido
prensado a vácuo
[como se entrar em algo
fosse de fato
a questão
e não apenas o início cósmico
de um grande problema]
#
diário
do ano do macaco de fogo
You transform into a tiger before their eyes.
Your very being commands an awe that makes
consulting the oracle unnecessary.
Hexagram Forty-Nine/Line Five: The revolution (I CHING)
se como celan
eu tivesse a
certeza
de que os poemas estão a caminho
se ao menos eu não tivesse
fundado toda uma mulher
[uma mulher inteira
garganta glote ancas
sexo tornozelos]
apenas em torno
de uma palavra infeccionada
se eu não tivesse
as mãos gretadas
como uma figura mitológica
mal-sucedida
em suas peripécias amorosas
eu poderia sim acreditar
[como se a minha vida
dependesse disso de fato]
no efeito de luz
na voragem súbita
no obscurecimento
que se segue
e se repete
e se repete
nesse projeto desconjuntado
de revolução
mas é que eu vejo coisas
vejo coisas em ti e neles
constato o que há de cínico -- o
símio
que mimetiza o desfecho ígneo
e não
eu não sei mesmo manusear o
objeto isqueiro
não tenho habilidade
para os grandes gestos
incendiários
estou aguardando
p a c i e n t e m e n t e
a grande água
como alguém que gesta
um filho querido
na cicatriz íntima
de seu próprio útero
mas se aterroriza diante
da perspectiva brutal
do nascimento
de um grito
#
dos
vulcões em miniatura
o poema está sempre na iminência
de uma parada perigosa
enganchando-se à maneira do amor
ao fazer eclodir na pele
aquilo que inflama
aceso
e que
com um estampido
logo
apaga-se
#
fauno
cultivamos ciclones
sazonais como
veleidades que pendem
da boca, as mancuspias
de cortázar:
um compósito bestial
perfeito.
nenhuma translação
escapa
à nossa disco-voragem
[lampedusa]
de ilha.
um ouriço albino desloca-se
lentamente
através dos meus dedos
transparentes;
[ há ]
um animal sagrado
sentado em lótus
que nasce do rastro
de teus cascos,
um centauro,
atravessa o peito
num salto
[flecha & alvo]
em casamento trágico
e perfeito.
porque você invoca em mim
a paixão mítica,
ancestralidade da carne,
que é a gênese cosmogônica
do universo inteiro,
me desvela arquipélagos urbanos
entre prédios, ruas, entre
seixos.
tenho a pele infectada de ti,
doença desconhecida que me
tangencia:
uma cicatriz desenhada
com os dedos.
[você],
você integra
my very own bestiário
contemporâneo
e me ensina pacientemente
duas ou três coisas
sobre a pele das ostras
e a minha própria morte.
#
o
problema do vermelho nos objetos
I-
sobre o problema
dos objetos
e o teorema das superfícies
sobrepostas com texturas
enganosas
: o atrito impede
a cálida aderência
de um volume
sobre um sistema
mecanicamente isolado
do resto do mundo.
esse problema --
o problema fundamental
do mundo --
é que
teus volumes drapeados
acumulam-se
[inteiriços e impalpáveis]
sobre os móveis
depois que te vai
e me pego
timidamente voraz
na tarefa
de assomar tua forma
com dedos inábeis,
esculpir tua voz
com fonemas de pele eriçada,
pelo sopro sintático quente
da tua língua materna emudecida,
substituída por equívoco
por grotescos saltos
de tradução.
II-
presto incontinente
atenção ao vermelho
que ondula nas falsas
constelações
de luz artificial na parede
da sala térrea
quando acontece de um carro
a t r a v e s s a r
a fachada do teu sagrado
edifício de pastilhas
[de gosto duvidoso]
-- esse jogo de luzes e sombras
a que alguns objetos
se prestam
quando ninguém mais se importa.
e durmo com
o problema dos objetos
e de teu volume drapeado
sobre as coisas,
o que se acumula à revelia
do sonho
e da
terrível
bidimensionalidade dos sonhos.
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