quarta-feira, 6 de julho de 2016

Um conto de Rodrigo Santos

Rodrigo Santos nasceu em São Gonçalo, Rio de Janeiro, em 1976. É escritor, professor, corredor de rua e zagueiro do Pindorama F.L., a Seleção Brasileira de Escritores.
É um dos criadores e apresentadores do projeto "Uma Noite na Taverna", um sarau mensal que acontece há treze anos em São Gonçalo, voltado à popularização da poesia.
Vencedor do prêmio FLUPP Pensa 2012, Rodrigo é autor dos livros de poesia Máscaras sobre Rostos Descarnados e Brechó de Almas, e do romance Mágoa, além de figurar em mais de uma dezena de coletâneas.
Atualmente administra as páginas O Bardo - Rodrigo Santos e Uma Noite Na Taverna.

Com ele damos início às postagens de contos em nossa revista.







Volta

- Deixa eu subir, Aldo.
A voz de Dália soava enfraquecida através do interfone. Eu havia ignorado todas as suas mensagens no celular, porém ela de alguma forma encontrara o caminho de casa.
- Aldo... Por favor...
Dois anos. Um bilhete na porta da geladeira, preso com o ímã do disk-gás. Dois cachorros, um peixe-beta (que morreu de fome), um cacto (de sede) e eu, deslocado no apartamento cheio de ecos retóricos.
- Sobe. – e apertei o botão de plástico com um telefonezinho em relevo para abrir o portão, agradecendo por não ter porteiro àquela hora.
Estava mijando com a porta do banheiro aberta quando a luz do corredor do prédio entrou na frente dela, e se foi. Ela não.
Não me dei nem ao trabalho de lavar as mãos, e fui para a cozinha fazer um café. Se era para ouvir groselha, que fosse ao menos com uma caneca de café.
Ouvi o barulho do zippo e a gaveta do rack se fechando. Dália estava sentada no sofá, no escuro, com uma grande bolsa de viagem no chão, sobre meu tapete branco.
- Cadê os cachorros, Aldo?
- Soltei na praça. Um foi atropelado, o outro um mendigo levou.
Seu silêncio denunciava a culpa. Se alguma coisa acontecesse com aqueles malditos cães à época em que ela vivia aqui, teria dado merda. Uma vez esqueci de comprar o biscoito scooby genérico e foi um badauê do cacete. Agora, nada se ouvia. Dois anos.
A sala estava escura, e eu acendi o cigarro na guimba que ela largara no cinzeiro. Coloquei uma caneca de café em uma de suas mãos, enquanto ela parecia não saber o que fazer com a outra.
- Aldo...
- Bebe o teu café, você está precisando.
- Ah, não fala assim... – quando ela pegou em meu braço, senti algo molhado e pegajoso. Olhei para a caneca e o algo molhado era vermelho. Sangue. Dália tinha sangue em suas mãos.
- Dália...
A caneca de café pousara na mesa de centro, e a outra mão estava em meu rosto, espalhando sangue e carinho.
- Quanta saudade, Aldo...
- Dália, que merda você fez agora?
- Shh... – Seu dedo pousado em meus lábios trouxe o gosto da ferrugem. – Não fala nada. Preciso de um lugar para dormir. E de um banho.
Dália se levantou e pude ver, em seu caminho para o banheiro, que sua saia hippie também estava manchada. A caneca tinha suas digitais. O barulho do chuveiro. Minha espera pelo desespero que não vinha. Dália. Dois anos, sequer um tchau, agora me aparece e mancha minha porcelana com o sangue de alguém.
Cheguei ao banheiro e ela estava agachada no fundo do box, as mãos pendidas ao lado do corpo. Seu corpo não mudara tanto nesses anos, seus cabelos estavam mais curtos, o fio de água rosada descia para o ralo.
- Pode usar essa toalha que tá aí.
Ela levantou apenas a cabeça e olhou pra toalha, e depois pra mim.
- Eu lembro quando a gente comprou essa toalha. Foi em Campos do Jordão...
- Naquela noite você vomitou o quarto todo...
- Eu estava grávida.
- Você é louca.
- Você me fez tirar.
- Eu apenas sugeri. Eu não queria filho.
- Comigo...
- Com ninguém. Nunca tive essa intenção.
- Você não gostava nem dos meus cachorros. Você deixou o peixe-beta morrer. Até o cacto!
- Não sou um cuidador, sou um gastador.
- Aproveitador.
- Chame do que quiser, não tem mais importância.
- E eu engravidei outra vez depois daquilo...
- Saia do chão desse box.
- Você não quis ouvir... Não quer ouvir agora...
- Vou pegar outra toalha.

Dália passou pela sala enxugando os cabelos, o corpo brilhando à luz da rua. Quando cheguei no quarto, ela estava deitada (na minha cama) em posição fetal, nua, os olhos estacionados na parede.
Aproximei-me lentamente, sem barulho, mesmo sabendo que ela podia me ver. Agachei-me ao lado da cama, e nem assim ela me olhou.
- Dália...
Nenhuma resposta. Dália soluçava pra dentro, e fungava com aquele barulho molhado de catarro preso.
- Dália, eu preciso saber o que você fez.
- Deixa só eu dormir aqui, Aldo. Prometo que vou embora quando o dia amanhecer.
- Ir embora é sua especialidade.
Silêncio.
- Por que você foi embora, Dália? Eu acharia que você tivesse sido abduzida se não fosse aquele bilhete na porta da geladeira.
- Eu estava grávida de novo, Aldo.
“Eu estava grávida de novo, e sabia que você não iria querer ouvir falar sobre o assunto. Então eu fui embora. Você sabe que eu sempre quis ser mãe, eu tirei três filhos seus por causa da sua estupidez. Eu te amava, Aldo. Eu te amo ainda. Eu perdi três filhos porque não queria te perder. Mas foi mais forte dessa vez, e eu tive que sumir.”
- Você estava... você...
- Mas eu te amo, Aldo. Você é meu fardo, meu simbionte. Mas pode deixar, amanhã de manhã eu vou embora.
- Se você estava grávida quando saiu daqui...
- Eu fiz besteira, Aldo. O que eu fiz não tem perdão, nem eu posso me perdoar.
- O que você fez, Dália? – meu coração começou a bater mais forte, pressentindo o desastre. Alguma merda grande havia acontecido, e a ideia começava a pairar como a sombra de uma nuvem de chuva. Eu tentei não pensar nisso.
- Eu não podia viver sem você, eu não podia olhar para você...
- Onde está a criança, Dália?
- ... era mais importante, mas não pude ficar longe...
- ONDE ESTÁ A PORRA DA CRIANÇA, DÁLIA?! – lembrei-me da bolsa e levantei correndo para a sala, esbarrando o ombro no portal do quarto. Ainda ouvi o fio de voz de Dália a dizer “... eu tinha que mostrá-lo a você, mas sabia que você não queria ser pai...”
Cheguei na sala, e a mancha sob a bolsa de viagem crescia no tapete branco. A mancha molhada, escura e pegajosa.



Meu filho.

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