Rodrigo Santos
nasceu em São Gonçalo, Rio de Janeiro, em 1976. É escritor, professor, corredor
de rua e zagueiro do Pindorama F.L., a Seleção Brasileira de Escritores.
É um dos criadores e apresentadores do projeto "Uma
Noite na Taverna", um sarau mensal que acontece há treze anos em São
Gonçalo, voltado à popularização da poesia.
Vencedor do prêmio FLUPP Pensa 2012, Rodrigo é autor dos
livros de poesia Máscaras sobre Rostos
Descarnados e Brechó de Almas, e do
romance Mágoa, além de figurar em
mais de uma dezena de coletâneas.
Atualmente administra as páginas O Bardo - Rodrigo Santos e Uma Noite Na Taverna.
Com ele damos início às postagens de contos em nossa revista.
Volta
- Deixa eu subir,
Aldo.
A voz de Dália
soava enfraquecida através do interfone. Eu havia ignorado todas as suas
mensagens no celular, porém ela de alguma forma encontrara o caminho de casa.
- Aldo... Por
favor...
Dois anos. Um
bilhete na porta da geladeira, preso com o ímã do disk-gás. Dois cachorros, um
peixe-beta (que morreu de fome), um cacto (de sede) e eu, deslocado no
apartamento cheio de ecos retóricos.
- Sobe. – e apertei
o botão de plástico com um telefonezinho em relevo para abrir o portão,
agradecendo por não ter porteiro àquela hora.
Estava mijando com
a porta do banheiro aberta quando a luz do corredor do prédio entrou na frente
dela, e se foi. Ela não.
Não me dei nem ao
trabalho de lavar as mãos, e fui para a cozinha fazer um café. Se era para
ouvir groselha, que fosse ao menos com uma caneca de café.
Ouvi o barulho do
zippo e a gaveta do rack se fechando. Dália estava sentada no sofá, no escuro,
com uma grande bolsa de viagem no chão, sobre meu tapete branco.
- Cadê os
cachorros, Aldo?
- Soltei na praça.
Um foi atropelado, o outro um mendigo levou.
Seu silêncio
denunciava a culpa. Se alguma coisa acontecesse com aqueles malditos cães à
época em que ela vivia aqui, teria dado merda. Uma vez esqueci de comprar o
biscoito scooby genérico e foi um badauê do cacete. Agora, nada se ouvia. Dois
anos.
A sala estava
escura, e eu acendi o cigarro na guimba que ela largara no cinzeiro. Coloquei
uma caneca de café em uma de suas mãos, enquanto ela parecia não saber o que
fazer com a outra.
- Aldo...
- Bebe o teu café,
você está precisando.
- Ah, não fala
assim... – quando ela pegou em meu braço, senti algo molhado e pegajoso. Olhei
para a caneca e o algo molhado era vermelho. Sangue. Dália tinha sangue em suas
mãos.
- Dália...
A caneca de café
pousara na mesa de centro, e a outra mão estava em meu rosto, espalhando sangue
e carinho.
- Quanta saudade,
Aldo...
- Dália, que merda
você fez agora?
- Shh... – Seu dedo
pousado em meus lábios trouxe o gosto da ferrugem. – Não fala nada. Preciso de
um lugar para dormir. E de um banho.
Dália se levantou e
pude ver, em seu caminho para o banheiro, que sua saia hippie também estava
manchada. A caneca tinha suas digitais. O barulho do chuveiro. Minha espera
pelo desespero que não vinha. Dália. Dois anos, sequer um tchau, agora me
aparece e mancha minha porcelana com o sangue de alguém.
Cheguei ao banheiro
e ela estava agachada no fundo do box, as mãos pendidas ao lado do corpo. Seu
corpo não mudara tanto nesses anos, seus cabelos estavam mais curtos, o fio de
água rosada descia para o ralo.
- Pode usar essa
toalha que tá aí.
Ela levantou apenas
a cabeça e olhou pra toalha, e depois pra mim.
- Eu lembro quando
a gente comprou essa toalha. Foi em Campos do Jordão...
- Naquela noite
você vomitou o quarto todo...
- Eu estava
grávida.
- Você é louca.
- Você me fez
tirar.
- Eu apenas sugeri.
Eu não queria filho.
- Comigo...
- Com ninguém.
Nunca tive essa intenção.
- Você não gostava
nem dos meus cachorros. Você deixou o peixe-beta morrer. Até o cacto!
- Não sou um
cuidador, sou um gastador.
- Aproveitador.
- Chame do que
quiser, não tem mais importância.
- E eu engravidei
outra vez depois daquilo...
- Saia do chão
desse box.
- Você não quis
ouvir... Não quer ouvir agora...
- Vou pegar outra
toalha.
Dália passou pela
sala enxugando os cabelos, o corpo brilhando à luz da rua. Quando cheguei no
quarto, ela estava deitada (na minha cama) em posição fetal, nua, os olhos
estacionados na parede.
Aproximei-me
lentamente, sem barulho, mesmo sabendo que ela podia me ver. Agachei-me ao lado
da cama, e nem assim ela me olhou.
- Dália...
Nenhuma resposta.
Dália soluçava pra dentro, e fungava com aquele barulho molhado de catarro
preso.
- Dália, eu preciso
saber o que você fez.
- Deixa só eu
dormir aqui, Aldo. Prometo que vou embora quando o dia amanhecer.
- Ir embora é sua
especialidade.
Silêncio.
- Por que você foi
embora, Dália? Eu acharia que você tivesse sido abduzida se não fosse aquele
bilhete na porta da geladeira.
- Eu estava grávida
de novo, Aldo.
“Eu estava grávida
de novo, e sabia que você não iria querer ouvir falar sobre o assunto. Então eu
fui embora. Você sabe que eu sempre quis ser mãe, eu tirei três filhos seus por
causa da sua estupidez. Eu te amava, Aldo. Eu te amo ainda. Eu perdi três
filhos porque não queria te perder. Mas foi mais forte dessa vez, e eu tive que
sumir.”
- Você estava...
você...
- Mas eu te amo,
Aldo. Você é meu fardo, meu simbionte. Mas pode deixar, amanhã de manhã eu vou
embora.
- Se você estava
grávida quando saiu daqui...
- Eu fiz besteira,
Aldo. O que eu fiz não tem perdão, nem eu posso me perdoar.
- O que você fez,
Dália? – meu coração começou a bater mais forte, pressentindo o desastre.
Alguma merda grande havia acontecido, e a ideia começava a pairar como a sombra
de uma nuvem de chuva. Eu tentei não pensar nisso.
- Eu não podia
viver sem você, eu não podia olhar para você...
- Onde está a
criança, Dália?
- ... era mais
importante, mas não pude ficar longe...
- ONDE ESTÁ A PORRA
DA CRIANÇA, DÁLIA?! – lembrei-me da bolsa e levantei correndo para a sala,
esbarrando o ombro no portal do quarto. Ainda ouvi o fio de voz de Dália a
dizer “... eu tinha que mostrá-lo a você, mas sabia que você não queria ser
pai...”
Cheguei na sala, e
a mancha sob a bolsa de viagem crescia no tapete branco. A mancha molhada,
escura e pegajosa.
Meu filho.
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